Todo mundo já conhece o personagem do Coringa como um palhaço perturbado, mas acho que nem todo mundo pensa nisso mais a fundo. Depois dos quadrinhos “Piada Mortal”, do Alan Moore, esse filme parece fazer o trabalho de se aprofundar no universo assustadoramente angustiante do personagem. Esse filme é sobre como uma pessoa pode sofrer a tal ponto a enlouquecer se tornar um assassino descontrolado, e não tem nada de bonito nisso.
Por conta disso, desde as primeiras imagens de divulgação, parece ter havido uma preocupação do personagem se tornar um ícone pra pessoas perturbadas, glorificando um doente mental fracassado que dá a volta por cima através da violência num mundo injusto e sem sentido. Ele poderia se tornar uma espécie de símbolo pro tipo de gente perturbada que faz massacres e depois comete suicídio. Ele poderia se tornar, de alguma forma, um ícone da “direita alternativa” se rebelando contra uma sociedade decadente, como muitos desses atiradores psicopatas costuma ser. Mas não é bem o caso no final das contas: o personagem deprimente do Coringa, na interpretação maravilhosamente angustiante do Joaquin Phoenix, é ele próprio reflexo assustador da nossa decadência.
Ele não é alguém que supera ou corrige os problemas do mundo, porque ele próprio é o sintoma da nossa doença. Ele é alguém que lamentavelmente perde todas as oportunidades de melhorar e não consegue assistência alguma, a ponto de simplesmente quebrar enquanto as coisas não param de dar errado a sua volta. Ele não vence: ele desiste. Essa aparente revolta não é nenhuma vitória, mas o lamentável auge do seu verdadeiro fracasso. O que é horrivelmente triste e pode até ser compreensível (assim como é “compreensível” saber a história de serial killers reais que viveram infâncias absurdas de abuso e violência), mas não pode ser de forma alguma romantizado ou justificado. É apenas horrível e não acho que o filme de forma alguma motive esse pensamento, por mais que esteja sempre na perspectiva do protagonista perturbado. Ele pode ser muito mais humano que o vilão caricato que já conhecemos, mas passa longe de qualquer imagem de superação ou heroísmo. Ele é alguém que dá vontade de salvar enquanto há tempo, mas é alguém que infelizmente já passou do prazo…
Enfim, depois que o filme saiu, parece que as preocupações se inverteram: o assessor de ninguém menos que outro doente mental psicopata, o Presidente do Brasil, chamou o filme de “esquerdista” e “sem Deus”.
Provavelmente pelo fato do filme mostrar uma sociedade horrivelmente desigual, violenta e corrupta, que impede qualquer possibilidade de esperança e recuperação pra alguém como o Coringa (que inclusive perde o minúsculo apoio que ainda tinha da assistência social, depois de cortarem os investimentos na área). É nítido que o personagem é vítima de um sistema falido e a carapuça logo serviu pra quem se incomodou. Mas ao mesmo tempo, pessoas na esquerda que antes se preocupavam do personagem virar um ícone problemático de direitistas indignados (“contra tudo que está aí”), agora parecem glorificar o personagem como algum tipo “anti-herói” admirável na sua revolta violenta contra os fracassos do capitalismo. Mais uma vez, definitivamente, não acho que seja o caso. Não existe absolutamente nada de heróico na vida de alguém como o Coringa, por mais nojento, horrível e injusto que seja o mundo que ele habita.
É importante saber ter empatia e admirar a construção de um personagem bem feito (e maravilhosamente interpretado), mas sem por isso admirar a pessoa que ele representa. Parece contraditório, mas não tem nada de bonito nesse sorriso bizarro.